sábado, 9 de maio de 2009

O Ermitão


Era uma neblina, mas podia ser qualquer coisa. O tecido que se fazia ao redor era tão intangível e inatingível quanto o ar vaporoso de uma névoa. Cercava e rodeava, mas em si não era só uma situação. Antes de uma situação, a certeza: A solidão é contrária ao homem. E com a certeza, a dúvida: E quando se admira e busca a solidão, deixamos de ser mais humanos? Pensamentos que corriam pela sua cabeça, enquanto os pés corriam na relva da noite.
Ele tinha quisto por si só rasgar a mortalha do tecido social, andar só por entre os escuros bosques, as alvas pradarias e os largos desertos. Isso seria normal para um velho inútil para a sua tribo, ou um doente, que viraria um estorvo para toda a sua comunidade, mas era uma criança. Mais do que uma criança, era uma criança bela em seu rosto e bela em suas atitudes, representava, quase como um arquétipo daquilo que se buscava naquela pequena comunidade perdida no mapa: Bravura e doçura, carinho e violência, firmeza e maleabilidade. Todas as características antagônicas, já que uma pessoa não poderia ser uma pessoa só, mas deveria ser todas antes de ser uma. Ainda sim, quis, quis viajar, quis se ostracizar, antes mesmo dessa palavra ser cunhada.
A briga deveria ser feroz, mas não foi. Todos sabiam que um exemplo deveria ser um exemplo, enquanto se mantivesse longe, assim a inveja não cegaria aqueles que observavam o exemplo, nem a corrupção acabaria com o arquétipo. A mãe, esse eterno ser cego das suas próprias atitudes e necessária em afirmar um padrão só dela, era a força contrária. Primeiro tentou convencer, mas os seus argumentos eram fracos diante da pedra irresoluta do pequeno menino determinado. Depois vieram as ameaças, que se originavam da doença e viajavam nos piores acordes de males possíveis. Por último foi à raiva, a mãe se tornou o cativeiro daquele que ela deveria proteger.
Ele pensava nessa dúvida, a dúvida se era humano enquanto corria. Os seus pés enlameados eram salpicados pela terra úmida do pântano, a casa deixada para trás mantinha seus irmãos e mãe ainda sonolentos, em um sono sonífero e remediado. Quando a criança finalmente percebeu, o mundo acordava e a noite era deixada para trás. Naquele momento era um ermitão, viveria do que caçasse, beberia daquilo que tivesse por perto, fugiria dos predadores e dançaria quando quisesse com a roupa que melhor lhe coubesse e, quando sem roupa, nu sentiria a relva pinicante em sua pele.
Conversou com plantas, bailou por cima da própria água. Quando cansou, tirou uma pestana um pouco antes do almoço. Comeu o doce mel, antes da carne cozida. Brincou, antes de procurar abrigo. Pulou. Ralou. Cansou. Beijou. Caçou. Tudo com a força de uma juventude que queria um mundo que a sua vila não o mostraria e nem poderia mostrar, já que nem mesmo sabiam que mundo era aquele.
Nada dura: nem o brilho e nem o dia.
A noite chegou com o peso das trevas a encobrir todos os caminhos.

Nem a alegria e nem a coragem.
Os sussurros da mata, que o cercava, diziam mais do que sussurros, afirmavam que era o jantar dos monstros da noite.

Nem o desespero e o medo.
O barulho do vento soprava e com ele um barulho peculiar de metal correndo pela força do vento. Aproximando-se, pôde enxergar a luz que cortava a noite: um velho lampião, ainda aceso, brigava com o vento para proteger a sua chama entre os cacos de vidro que sobrava.

Nem a vida e nem a morte sobrevivem por tanto tempo.
O menino apanhou o lampião, pegou os trapos na velha carroceria daquela carroça tombada e, por último, instintivamente, lançou mão de um cajado, que serviria a ele marcar o tempo de sua vida, para que ele pudesse ser o pastor da ovelha que ele mesmo era.
A criança não era velha, nem podia ser, o seu tempo de vida não marcou a sua carne com a putrefação característica, mas qualquer um que olhasse aquela figura encapuçada e detentora de um cajado diria: “Há, aí, um homem velho que precisa de cuidado”, ou até: “Coitado, doente e leproso, foi deixado para trás, que desumano”. Mas ninguém estaria certo, ele só cumpria o seu destino, ser um andarilho, um ermitão. Ser solidão, antes de ser vida, gente, velho, ou novo. Eram todos conceitos, ele só tinha se apropriado de um e sabia o que isso significava: caminhar por todos os caminhos e ser guiado só por si mesmo. Só abandonaria o cajado quando morresse em sua última busca. Sua estrada final era a casa, mas antes, era todo mundo e estrada que aparecesse.

Owen Phillips

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