terça-feira, 7 de julho de 2009

Questão & Desgrenho




O peso poderia tê-lo deixado curvado, mas o seu peito e as suas costas ainda se mantinham retos, tudo por conta do costume. Tinha levado aquele peso por tantos lugares, que havia se acostumado, tanto o seu corpo, quanto a sua própria alma. Era um caminhante, mochileiro, jovem, desperto, alto. Nem belo, em sua juventude, nem estragado, pela sua viagem, mantinha a medida da marca do Sol sobre a pele, em um tom amorenado, mas mantinha também cabelos desgrenhados de quem os mantinha livres e ao sabor do vento.

De tantos lugares que havia passado, e olha que eram muitos, ele tinha posto as lembranças em suas costas, guardado pequenas quinquilharias, não enchia uma casa, mas enchia uma mochila. Mas voltando, de tantos lugares que havia passado, foi naquele lugar que ele decidiu parar, por uma noite e um dia inteiros. Havia disso, em tempos queria ficar por mais tempo do que o passar rápido, contínuo e pérpetuo de sua passada. Cansaço? Preguiça? Ou apenas um bom Turismo? Era tudo isso e muito mais, caminhar não dava tempo de apreciar paisagem e nem juntar quinquilharias, era nessas paradas que ele juntava a sua tralha e aumentava a sua bagagem. Não era o viajar que o preenchia, somente o viajar quando tivesse que por um determinado tempo ficar.

Não havia como se perder ali, literalmente só havia duas ruas, uma de entrada e outra de saída. Todos se encontravam em duas vias e as duas vias tinham que se encontrar em uma praça. A praça era mais do que um shopping, era uma feira perene, um ato social. O mochileiro se espantava com aquilo tudo, era tudo tão pequeno: conseguia ver todos se cumprimentando , com pequenos acenos, palavras entrecortadas entre os dentes e é claro os olhares dos “nativos” diante do seu “invasor” visto como um moderninho. Ele já se acostumava, era assim em todos os lugares.

Durante a noite decidiu procurar uma pousada. Era a única do lugar, confortável como colo de mãe e quente como uma cama que se deitou durante toda a noite. Um lugar agradável, com senhoras e senhores que contavam seus causos, com a preguiça de quem não tem nada para fazer o dia inteiro. A noite podia ser melhor, é claro, tudo sempre pode ser melhor, mas não havia Lua alguma e a noite era mais sombria e profunda do que todas. Mas havia beleza até no mais profundo escuro e ele admirava assim como se assombrava com vultos que a sua imaginação criava aqui e acolá. Como aquele que andava, era um vulto, fruto óbvio de sua imaginação, logo aquilo iria se desvanecer, como a fênix negra, o homem no cavalo e a dama de duas cabeças com flores nos pés. Era sua imaginação preenchendo o escuro do seu mundo interior. Mas aquela sombra continuava a andar. Demoraria a se desfazer, para tanto só pensou em olhar para outro lugar, olha lá, um dragão lutando contra um anjo de asas negras (claro, tudo era negro, não poderia haver outra cor de suas asas). O homem continuava a andar e já estava na praça. Fruto de imaginação idiota, não sumia, concentrou em outro lugar, flores que se desfizeram em abelhas de contornos bizarros, escorpiões do tamanho de edifícios. O homem já estava na praça.

Então aquilo não era sua imaginação preenchendo o vazio do mundo e do escuro? Ele prestou mais atenção, era um velho, procurava alguma coisa no chão, com movimentos de quem dizia que aquilo sempre estava ali e agora não mais se encontrava. Encontrou, um caixote e se apoiou nele, ergueu-se e agora parecia alguns centímetros mais altos. O mochileiro tinha que ver isso de mais perto. Não quis saber da hora e saiu aos saltos, pulos e tropeços. Fez mais barulho do que a sinfonia da gataiada do lado de fora. Estava na praça antes que o seu fôlego pudesse chegar com ele, contudo, ali por perto podia ouvir melhor.

“Não neguemos o futuro com a certeza do passado, ou a paz com a necessidade pelo conforto...” O que ele estava fazendo, questionou o mochileiro, quase dizendo aquilo em voz alta. Ele dava lições para o vazio, só havia ele ali e, pelo jeito, ele tinha começado sem nenhuma platéia. “Não façamos de nós meios daquilo que ainda estar por vir, sejamos o que estar por vi, nós mesmos”. Eram pérolas de sabedoria, ou tolices de um profeta lunático (seria mais lunático se houvesse Lua aquela noite). Eram declamações, orações, poesias e ele se espantava com aquilo. Ele queria saber mais, mais daquele homem, mais daquele profeta, ele queria entender por que fazia isso. E com tantos questionamentos, por momentos perdia a linha lógica que o velho louco dizia: “... e é esse o estranho para todos nós”. Que estranho? Do que ele estava falando. Devia prestar mais atenção, mas a situação era mais insólita conforme a sua atenção aumentava: o velho falava para o chão, com a cabeça abaixada, ainda assim gritando, como se falasse para os pés. Era sua platéia o dedão do pé? Ou falava como um que tem vergonha daquilo que mesmo diz. Era sábio ou louco? Louco ou cego? Cego sim, pois ele estava lá e mesmo assim ele não falava para ele. Não havia nada que prendesse o mochileiro, ou qualquer coisa que o fizesse sair dali. Estava frio, correto, mas aquilo não era um obstáculo, somente tornava ainda mais excitante a experiência que via. Estava frio e o homem usava trapos.

“A vida é somente a certeza da própria morte.” Como? Ele não tinha uma fala construída? Falava palavras soltas para causar impacto, mas a quem? Aos pés? A si mesmo? O chão, ou a ele, pois ele devia ter notado a sua chegada estabanada com todo o barulho causado. A sua resposta era uma atitude impassível ao frio, barulho, vento. Aquilo durou por cerca de meia-hora. Depois de tantas falas que o atingiram como coisas que nunca ouviu, ou nunca queria ter escutado. O homem, com o mesmo jeito tranquilo, puxou o seu caixote, pôs no mesmo lugar, olhando para o lugar ao redor e marcando, com o olhar, as suas referências, para não perder de novo. Foi quando já tinha tudo preparado que o cabelo desgrenhado surgiu em sua frente. Primeiro o cabelo, depois o rosto logo abaixo e um nariz que não parecia um nariz, mas um coração pulsante com dois furos, por onde saiam o ar. Ele correu e ele estranhava isso.

O mochilheiro não podia deixar escapar a chance, olhou firmemente nos olhos cercados por rugas, respirou fundo e disse sem antes mesmo de se apresentar: Por que? O que foi aquilo? Como? Quando começou? Quem é você? O que você quer com isso? Por que? POR QUE??? A última indagação soou muito mais como um grito de socorro de um naufrágo do que de um interrogatório. A sua resposta a aquilo tudo foi estender um braço abrir a sua mão e dizer: Prazer, pode me chamar do que você quiser, já perdi o meu nome há muito tempo e hoje tenho tantos nomes, quanto pessoas que eu conheço, ou conheci. Aquilo foi para ser simpático, ou era de alguma forma um sádico, que nem o próprio nome ele conhecia e, o que é pior, nem respondeu a sua pergunta. Pode também me chamar de qualquer coisa, se era para ser sádico, que o jogo fosse dos dois e não só dele. Desgrenho, eu te chamo hoje de desgrenho, seguido por um sorriso leve onde se mostrava o amarelo de dentes e grandes espaços entre eles com olhos fechados como se as maçãs do rosto tampassem os olhos. E eu te chamo de Questão, pois é isso que você me deixou aqui agora. Visivelmente o mochileiro não gostou nenhum pouco do nome dado, era desgrenhado sim, era um símbolo para ele do que ele próprio significava para si e não motivo para ser um nome, ou até mesmo motivo de zombaria, alguém zombaria a sua qualidade? Não, somente dos defeitos e o velho conseguiu o atingir em duas palavras, o que faria em seguida? Puxar uma arma?

Eu só quero saber o que foi isso? Com essa frase ele conseguiu resumir tudo que pensava e de forma clara sem que houvesse escapatórias. Isso foi uma aula, o velho louco Questão respondeu cegamente como se fosse um questionário simples. Então para que olhava para os pés? Aulas se dão para alunos, estudantes, raios que seja e não para o dedão ou o mindinho. Apesar do tom prepotente era muito mais a ansiedade pelo encontro insólito, do que uma falta de respeito e Questão entendia isso como se já tivesse visto isso antes. Para ensinar precisamos ter a humildade de olhar para baixo, pois dali que viemos e para lá que voltaremos. Charadas, era tudo que ele recebia em respostas as suas dúvidas, eram compreendidas, facilmente traduzidas. O mochileiro desgrenho se questionou quantas vezes a voz foi melhor projetada com o rosto para o alto e não com a cabeça baixa. E para quem você falava, o jovem perguntou rápido. A quem quisesse escutar, já que a boca foi feita para que as palavras sejam ditas, o meu papel eu faço. Agora, o ouvido foi feito para escutar e escuta e entende quem quer.

Funcional, louco funcional era a sua resposta a visão daquele velho Questão. Mas não havia ninguém aqui, só eu, e você começou mesmo não tendo ninguém. O velho Questão olhou ele de cima abaixo procurando alguma coisa, não sabia o que. A sua resposta veio como uma pontada rápida e alta. O importante é não é que alguém escute, é que eu fale. Após isso, a sua saída foi tão rápida que o pensamento do Mochileiro Desgrenho não se atentou para que corresse atrás. Havia questões em sua cabeça? Sim, mas não sobre o velho, mas sobre o que falava.

Aquela manhã acordou e saiu rápido, era para ficar até o término da manhã, mas já o tinha que veio buscar. Naquela manhã as costas doeram, a mochila pesava.

Owen Phillips

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