terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Aquele que Nunca Esquece




O céu pintava algumas colorações de vermelho, mas isso não diminuia nenhum pouco a temperatura, que nos últimos anos só poderia ser descrita como insuportável quase todo ano. A camisa branca estava grudada no peito, um efeito que poderia ser sexy, mas agora, era só nojento devido ao suor que era constante. O fone no ouvido era um instrumento de distância necessária, mas isso não o impedia de acenar para o porteiro que já o conhecia há alguns anos. A subida foi difícil, mas naquela idade que chegava, as coisas iam se tornando vagarosamente difíceis para qualquer um. Ele não se punia, tinha deixado de ir a academia fazia uma semana, mas uma vez por semana, depois do trabalho, ele subia aquelas pedras de paralelepípedos e era cercado por aquelas arvóres centanárias. O tom neocolonial e a cor levemente azulada o irritava e ele tinha certeza de que o irritaria também. Até mesmo que, como ensinado, até o ódio por coisas simples poderia ser instruído, de um jeito ou de outro.
A enfermeira não saiu antes do tempo, com a sua roupa branca impecável o estava esperando, o coque, preso atrás em uma longa armação, fazia dela uma imagem limpa, ética, higiênica. Ela o acenou, de forma falsamente amigável e logo se pôs a se apressar ao lado dele. Ele, aquele homem adulto, queria perder o tempo admirando o chafariz, ou perceber a delicadeza das plantas, mas sabia que nada daquilo sequer era real, tamanha beleza só servia para esconder o horror que era lá dentro e fez esse caminho, deixando a sua vontade para trás, assim como a sua paz.
“Acredite, ele anda melhor do que antes. Apesar de não ter relação nenhuma com a realidade...” Ela engasga quando ele a fuzila diretamente por trás daqueles óculos, transmitindo um eterno ar frio. Ela se recompõe e mantém a lista de informações que deveria dizer e corrige: “... ele ainda continua a enxergar apenas o passado, e falar apenas dele, não nenhuma comunicação com o presente.” Ela prontamente ignorou completamente qualquer olhar do rapaz e o mesmo, prontamente, não precisava entender o que ela estava dizendo, já que seus olhos, ao chegar ao pátio, se lançou a olhar o pátio, procurava, procurava e procurava. Ele sabia que estava ali e, sim, estava. Cavucando o chão ele tentava desenterrar alguma coisa. Suas roupas sujas, tinham quase a mesma cor das suas mãos e o pouco cabelo servia apenas para tampar a testa que se abria em um formato quadrado. A cor cinza tinha tomado conta do seu couro cabeludo e o seu filho sabia que seu pai, até nisso, ficaria feliz.
“Pai? O que o senhor procura?”. O amor não era só nas palavras, mas também nas ações de não julgar ou humilhar o homem, velho e decrépito, a sua frente. “Eu tinha enterrado ele perto da morangueira, eu queria tirar ele daqui, mas eu não achei a morangueira, agora quero ver se não tá em outro lugar. A minha mãe deve ter guardado, mas eu a chamo e ela não vem.” O filho apenas apoiou o ombro do pai. A mãe dele tinha morrido há algumas décadas e ele não sabe se a morte da sua avó desencadeou isso, ou se parte dele sempre foi assim. Claro que ele só foi para o asilo depois que perdeu totalmente a conexão com a realidade, após a morte do marido dele, o seu outro pai. Nesse instante ele deixou simplesmente de reconhecer qualquer pessoa. Ele tirou o pai dele dali. Levou até um banco e tentou conversar com ele. Os olhos vazios, pareciam estar entregues no seu próprio mundo de faz de conta, que ele mesmo nunca conseguiu entrar. Claro que ele o leu, mas nunca conseguiu entender, nem a relação das personagens e nem o que tudo tinha relação em si.
“Comprei uma nova casa e devo me mudar com a Claúdia em breve para lá. Pai, eu vim te contar uma notícia: Você vai ser avô.” Seus olhos marejados esperaram qualquer resposta daquele ser a sua frente e ele apenas dizia: “Só preciso de mais cinco pontos e depois disso, vou poder entrar”. Quando não repetia palavras que não tinham conexão nenhuma e ele continuava repetindo números, falar e referências perdidas que ninguém mais tinha. Seu pai estava longe, longe de qualquer salvação. Ele segurou as suas coisas e ia levantando, quando o velho começou a repetir: fone, fone, fone, fone, fone. Quando quase começou a berrar, ele tinha percebido o detalhe, ele estava com fone de ouvido desde o início da conversa.
Ele tirou o fone, guardou na mochila, abriu o sorriso, enquanto a noite caia, tampando com uma fina camada de escuridão o jardim, enquanto as últimas enfermeira tiravam seus pacientes para os quartos. Ele segurou seco a emoção, que vinha forte nele, olhou para o rosto do pai, com veios grossos que cruzavam o seu rosto, e esperou a fala coerente que poderia vir.
“Tem um lobo de escamas, o que você vai fazer?”. A escuridão terminou de pintar tudo em tons de azul escuro, enquanto as lâmpadas acendiam com luminosidade levemente amarelada nos postes do jardim.

                A enfermeira tocou no ombro dele e com um olhar de pena cruzou o daquele homem, que estava irremediavelmente chorando. Suas lágrimas caiam, como em uma torneira sem fim, ainda que sem uma expressão ou outra surgisse em seu rosto. Sem que houvesse uma pergunta ela começou a responder: “A parte que compõe a nossa memória é a mesma que compõe a nossa imaginação e sonho, lembrar de algo é ao mesmo tempo sonhar com aquilo e parte imaginar aquela mesma coisa. Por algum motivo, que não sabemos, seu pai só vive agora no passado de 20, 30 anos atrás, ou, quem sabe, mais. Ele não tem nenhum dano no cérebro, não sofre de nenhuma doença degenerativa, ou qualquer elemento diverso. Mas parece que decidiu viver em um passado que não existe mais do início do século. Por conta disso, que ele está e você, melhor do que eu sabe disso. Não se culpe e nem culpe a ele”. Ele secou o rosto, com a gola da camisa, fungou forte, para puxar o nariz que havia entupido, cerrou os olhos e se levantou. Deixava para trás a única família que conhecia e ia a frente querendo construir a sua própria, a partir de agora. As sombras e o silêncio do local, não permitiram que ele ouvisse, de longe e por entre os dentes, um “Tchau, Miguel”, que o velho disse sussurrando.


Owen Phillips

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quarta-feira, 4 de março de 2015

O salto e o passo

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Os vapores da noite subiam em rodopios e redemoinhos da parte mais funda, para o mais alto até chegar nas narinas. Eram odores pútridos, de carne, vermes, salpicados por um leve cheiro de fezes e urinas. Esses odores eram levados pelo vento e mexiam as madeixas de um loiro pálido e encaracolado do jovem ali, as suas pernas balançavam e ele respirava, enquanto apoiava a sua mão no parapeito de ferro da ponte. Quando deu aquela tragada do cheiro nauseabundo olhou em definitivo para aquela lua pálida e distante, cheia e quase escura.

"Você vai ou não pular?"

A voz veio daquele que estava ao seu lado. Um homem sempre o vinha visitar, naquele mesmo horário e esperava que ele fizesse a decisão e não importa o que acontecesse, ele retornava na noite seguinte, sempre com a mesma pergunta.

"Não sei, devo?"

A resposta do garoto veio como uma pergunta, mas era um pedido de socorro, um socorro que indaga, uma indagação que não pede uma resposta, apenas apoio.

"Isso é com você, não comigo. Eu nunca digo o que tem que fazer. Até mesmo o que faço eu simplesmente faço e não questiono".

O garoto olhou para aquele velho, careca, enrugado e quase se compadecia da vida que aquele velho deveria levar. Conversar com um moribundo como ele, aquela hora da noite, era a marca registrada de uma vida miserável. Ele daria aquela chance, mais uma vez ao velho, de dar uma importância que não se daria a ninguém, apenas para ajudar.

"O que você quer de mim?"

O velho careca abriu um sorriso, ele estava esperando aquilo havia uma semana e por certo ele teria a resposta agora. Ele devolveu um olhar certeiro e antes que dissesse alguma coisa o garoto estava de pé, com os braços abertos, pronto para o salto derradeiro, o último passo, aquele que o libertaria.

"É isso que você quer velho? Quer que eu pule?"

A resposta veio seca.

"Não, quero saber o que você vai fazer depois"

Ele paralisou e parou com a sua pseudo-pirotecnia de quem vai saltar e simplesmente disse: "Vou morrer é isso que fazemos, não?"

O velho apenas apontou para o chão, como se fizesse isso toda a noite e por debaixo da escuridão, por entre as luzes do poste e dos restos de caixas de papelão havia a carne putrefata de onde saía o cheiro nauseabundo, de onde pululava moscas varejeiras e ratos, onde um ninho de baratas fazia de lá seu lar e recinto. O cadáver estava insepulto e aquilo o fez desequilibrar.

"O que você quer?"

"Quero que você me diga o que fará depois de pular, voltar aqui para pular de novo? Quantas mortes deve encenar, quantas noites titubeará diante da decisão que sempre acaba tomando, a de dar um salto. O que fará quando tiver apenas saltos a realizar?"

O garoto sentou. Olhou para baixo e tentou verter alguma lágrima, mas ela não saía, tentou fazer algum outro impulso, que não fosse estar ali sentado, tentou não querer pular, mas parecia a única saída, a de repetir aquilo até a exaustão. Queria encontrar lógica nisso e não havia. Quantas vezes fingiu que morreu e em qual delas morreu de verdade? A lembrança nublava, até o momento que olhou para o lado e não havia mais o velho careca, apenas algo que se assemelhava a um manto em farrapos e a face por trás do capuz sumia em uma escuridão cegante.

"O que devo fazer?"

"Dar o próximo passo."

"E como faço?"

"Isso eu não posso te responder, mas te mostrar, é só me seguir, por isso que estou aqui"

"Eu estou com medo"

"Todos têm medo, mas qual é a sua outra opção?"

"Eu vou ficar bem?"

"Não sei"


O garoto segurou a mão fria que se escondia por debaixo daquele manto negro e naquela noite, não se ouviu de novo o som surdo do baque de um corpo caindo no chão, como acontecia há uma semana, a pequena Annie pôde dormir sem acordar às três da manhã.

Owen Phillips

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