segunda-feira, 5 de julho de 2010

A Perda do Sonho.


Naquela manhã as mãos suavam e a agitação era incomum. A velha mania de coçar a baba rala na face quase sem queixo reapareceu. Era sintomático, pensou, sempre foi assim, mesmo quando não havia barba, coçar o queixo era o sinal da angústia que queria sair pelas mãos, mãos ansiosas por fazer. Só que agora, diferente de antes, não havia o que fazer, mas sim o que procurar. Ele desceu da velha casa-sotão que ele fizera no segundo andar da sua loja. Lá iniciou, anotou tudo que se lembrava em um papel e pôs a procurar. Sim, contas pagas, pôs um visto do lado do quadradinho. Arrumação do sebo de livros? Visto. Levar o lixo para fora? Visto. Cartas na primeira gaveta de cima do lado esquerdo? Visto. Penteado? Visto. Unha feita? Visto. A lista era interminável, até que se cansou e sentou, não sabia mais o que faltava, tinha chegado ao limite do aceitável, estava verificando já os pregos na estante.

Mas aquela ansiedade não cessava, sentia falta de algo, mas ignorou, a vida seguia e não poderia esperar para solucionar o seu enigma. Virou a velha plaquinha da loja e deixou Open para quem quisesse entrar. Os mesmos velhos amigos apareciam, desde o pequeno ladrãozinho de livros que não tinha dinheiro e que aceitava que lhe furtasse pequenos autores nunca comprados, até ladrões profissionais, vindos da Universidade de Londres e que lhe tiravam autores caros que ele já fazia a preços acessíveis, mas mesmo assim, eles queriam que fosse de graça. Não mais, tinha os velhos e os novos que se encantavam com a beleza que ele criava. A loja era uma pequena casa, que no primeiro andar, se tornou esse sebo com a coleção oriunda do seu pai, hoje já falecido. Ali havia de tudo um pouco, desde livros de bolsos, até velhas enciclopédias empoeiradas que davam um charme com as suas teias de aranhas e suas páginas amareladas. Sim, o teto, que servia de chão para o andar superior, era tomado por uma biodiversidade aracnídea a pôr inveja a qualquer estudioso de insetos e afins. Os seus olhos vagavam pelo teto, perdido nos seus afazeres, quando, do canto superior, viu um espaço vago.

Era isso, um espaço vago que o angustiava. O seu sebo de livros não possuía muitos compradores, por certo, passava dias sem que alguém ali fizesse uma compra vultuosa e para ser um volume que estava perto do teto, por certo deveria ser uma compra imensa. Verificou o número dos exemplares aos lados, números que serviam para a catalogação do imenso acervo de livros. Olhou mais uma vez o livro-caixa e tomou de assalto um susto. Não poderia ser, o número correspondia a SH4K3. Era um livro que não ousava nem ao menos chegar perto, um exemplar antigo de Romeu e Julieta. Não era somente um exemplar, a sua raridade era peso em ouro. A displicência que era posto, meio que de lado no alto da estante era proposital, ali onde estava ninguém enxergaria e se enxergasse não daria valor. Iria acreditar que o livro era alguma enciclopédia que não se vendia mais ou algo pior e baixo. Naquele momento ele deu um salto. “Eu vendi?”. Continuou lendo todo o livro caixa e em nenhum lugar estava anotado um valor que correspondesse ao tanto que aquilo valia.

O susto passou e no lugar ficou o desespero agudo e torturante, como uma fina agulha que perfurasse da sua pele até o seu osso. Fechou a loja no mesmo instante, reorganizou toda a prateleira, repôs os livros umas três vezes antes de se dar por cansado. Não, não estava ali nem lugar algum, não havia sumido, pior, havia sido roubado e não tinha a menor idéia de quem seria. Descobriu como poderia sentir falta de uma daquelas câmeras que pudessem vigiar a loja. Se a metade do dia foi feita para o desespero a metade seguinte foi de uma longa espera na delegacia mais próxima para dar sumiço da sua preciosidade. O preço incalculável poderia aparecer nos jornais sensacionalistas e isso poderia ser pior, até mesmo para as investigações. O delegado jurou que faria isso no maior sigilo possível, apesar do que, não poderia evitar que os policias investigassem a sua loja.

O dia tinha começado com uma angústia, mas ia terminando não com o sentimento de vencido, ou o da perda de um grande valor, porém, com a mesma angústia, a mesma angústia de algo que ainda não foi encontrado. Queria esquecer, descansar, ouvir uma música, comer, trocar de roupa e ter a certeza de que todo esse sentimento ruim sumiria. Quando, já pronto para descansar, foi pegar o que estava na escrivaninha, deixou algumas velhas folhas secas caírem e alcançou, como sem perceber, um caderninho que estava embaixo do livro que lia.

O caderno poderia ter passado sem ser percebido o dia inteiro. Reacendeu a lâmpada para ler o que havia nele. Surpreendeu-se com a escrita, tão delicada que parecia algum caderno antigo, escrito por alguém versado em caligrafia. Nele havia contos incríveis, de reinos perdidos e esquecidos, nomes estranhos, desenhos de mapas, juramentos, versos proibitivos. No fim, na última folha usada e gasta, em uma letra grande, escrito aparentemente às pressas vinha o último dizer: Para mim retornarás, Slurth. Deu de ombros e dormiu, sem nunca saber o que tanto queria encontrar, ou o que afinal havia realmente perdido, talvez, para todo o sempre.

Owen Phillips

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