domingo, 9 de setembro de 2012

Para as Histórias Sem Término


Para as Histórias Sem Término.


Os passos eram ocos na madeira, que mesmo velha não rangia. Eram passos próximos, devido as suas pernas curtas e passeava habilmente entre as longas prateleiras, que mais pareciam muralhas com tijolos que eram livros, por vezes imaginava assim. Mas fazia tudo de forma tão alegre e tão vivaz que não sentia a hora passar. Ele fazia, porque lhe fazia muito bem, antes de tudo.
                Ele tinha terminado por hora o seu trabalho. Sabia que muitos daqueles papéis não seriam nem sequer olhados. Passou a correr pelo grande salão com seus olhos curiosos e encontrou os olhos do salão, vitrais multicoloridos, irradiado pela luz de um Sol que nunca se punha, e nunca irá se pôr, iluminava tudo aquilo com cores douradas. Era o salão o único observador daquela pequena criaturinha, com cabeça grande e orelhas caídas a frente do rosto, mãos pequenas e pés que eram ainda menores. Os pergaminhos e afins não deixavam ver que por detrás de tudo havia olhos grandes e amendoados. Mas ele era ligeiro e antes que alguém pudesse ver mais dele ele já havia sumido.
                 Na sala a frente, após passar o imenso portal de carvalho retorcido, com centímetros de espessura, chegava a um ambiente menor, mais soturno, onde a claridade não se espalhava como um véu de noivas, mas se concentrava em pontos específicos e um desses pontos e, talvez o único, eram as cadeiras e a mesa. Na mesa, pena e tinteiro, papel e régua, livros abertos e esquemas. Algo ali estava sendo construído, mas havia sido parado, até que ponto? A criaturinha jamais saberia, seu papel era entregar a quantidade de papel requisitada e uma vez feito isso não havia motivo para estar entre aqueles dois poderosos e imensos senhores. O quanto antes esquentou seus pés no chão e só o barulho da portinhola na porta foi escutado.

No fim, só havia dois homens, sempre um de frente para o outro. Em um canto da mesa, normalmente voltado para aquele que recebia, estava um homem alvo, de pele esticada e ressequida, assim como cabelos e mechas oleosas que caiam, por hora, na frente do próprio rosto. Cabelos brancos, mas só ele sabia que era de prata. Naquela parca luz o amarelo ressaltava dos seus olhos largos e grandes. Seu sorriso sonso e mortal continuava mesmo quando a sua aparência era séria. Do outro lado, havia um homem, de óculos, cavanhaque, rosto fino, nariz também fino. Cabelo bem cortado e negro, ainda que seus pelos da face fossem quase puxados para o ruivo. Haveria ele pintado esses pelos? De qualquer forma, na mesa descansava pena e tinta, mão e punho, livro e papel e o homem de cabelo prata ainda olhava de forma desafiadora para o de cavanhaque.
“Então é assim? Não vai terminar de novo? Você não se cansa de tentar, para o fim ser apenas isso?”. O sorriso na sua cara, após dizer isso era de uma alegria infindável. A sua vitória já acontecera, não havia mais motivo algum para estar ali, a não ser festejar a vitória, pôr os louros no topo de sua cabeça de longas madeixas e desprezar o derrotado. Ele, naquela noite, era a própria vitória encarnada.
“Sim, sem dúvida é assim que deve terminar, não é do jeito que eu desejava, mas foi assim que terminou”. A sua tristeza era visível. Foi com dificuldades e em câmera lenta que ele foi fechando o livro, as lágrimas chutavam com força a borda dos seus olhos, enquanto as primeiras gotas turvavam a sua visão, mas aquilo seria mais do que ele poderia entregar, especialmente na frente do seu inimigo clássico. Não deveria e não o fez. Engoliu a seco, com a sua força característica, e se pôs de pé com o livro em mãos. Olhava para a vasta prateleira e se perguntava onde deveria guardar, quando a próxima estocada veio em palavras afiadas e mortíferas.
“Isso, guarde ali, do lado daquele outro fracasso literário seu, onde também não pôde, ou não quis terminar. Ou, melhor, poderia guardar naquele canto, pequeno, que o conto era do que mesmo? Ahh sim, daquela menininha e das suas cartas. Deixe-me vê se me recordo, outro inacabado seu, correto? Isso não deveria ser uma prateleira, mas um açougue, com tantas histórias picotadas e interrompidas.” Aquilo era a glória, mais um passo e ele, mais uma vez, teria o controle. Ele estava lá quando ele se perdia, sussurrava quando tudo o mais brilhava, mas naquele momento? Naquele momento era o auge, os seus cabelos moviam-se com o parco vento que corria com a porta entre aberta, dando a impressão de serem serpentes bailando na altura dos seus ombros, silvando o veneno que caia em doses mortais a cada palavra, a cada letra.
O homem de pelos marrons no queixo, continuou a olhar para ele. Um misto de ternura, dor e pena, uma simples calmaria enchia seu coração. Aquilo não era o melhor em nada, aquele homem era a própria representação da morte e da fraqueza que há na morte. Seus traços representavam isso cada vez que ele aparecia. Não poderia sentir pena, pois pena era reservado para coisas que existiam e ele sabia, fora daquela realidade, eles se dissolveriam no vácuo existencial. Por fim, encontrou um espaço largo, onde um longo volume sobre uma Epopéia fazia seu local de descanso. Tirou a poeira da roupa e continuou em pé olhando para aquela cena patética que havia a sua frente.
“Bem, isso, volte, sente de novo e vamos, nós dois, construir essa história. Mas lembre-se, sou eu que dito o fim, sempre. Se por acaso, mais uma vez resistir, se por algum acaso novamente vir a se perder, eu estarei na esquina esperando o seu grito de desespero e tomo as rédeas nessa história. E não, não haverá final algum feliz. Aqui não temos finais felizes, estamos certos?”
Owen, o homem de cavanhaque, negou com a cabeça pendendo-a para baixo. “Não, não mesmo Zenolis, não é assim que começa e nem será assim que termina uma história. Agradeço toda a sua ajuda e, até mesmo, ao atrapalho que você criou. Mas sejamos sinceros, isso que você entende como vitória, é apenas a derrota de todos nós. Aquilo que você vê como um avanço para você e quer entender como um retrocesso, para mim, é apenas um fim, por vezes necessário. Tempo em demasia deixei o livro aberto. Tempo em demasia, esperei. Não foi nem você e nem eu, não foi ninguém aqui, ou aí, foi apenas o tempo. O tempo sim, esse tudo termina e termina quando há necessidade de terminar e não, não estou triste pelo fim, nem alegre pelo mesmo. O que estou fazendo, pequeno demônio criado para me acompanhar, é apenas me preparar, preparar-me sempre para uma nova história.” Ele pegou a pena, uma nova resma de papel, olhou para a chama, fitando-a positivamente, esperando que viesse a criatividade com novas palavras e novas histórias.
“Não se iluda, será mais um fracasso. Aqui como outras vezes, foi um fracasso e essa sala é cheia de coisas velhas e imundas, serve como um hall de exemplo do seu exímio estado de fracassado e da sua incompetência. E o que você faz, aí, sentando, é só preencher esse fracasso ainda mais.” O seu riso era impossível de conter, assim como as sombras lançadas pela luz da vela abraçavam-no, escurecendo o ambiente, também a luz decaia cada vez mais.
As palavras a seguir do Owen veio cheio de lamentação e dor. “Então eles seguiram para a estrela, em busca do sonho que haviam perdido. Suas lembranças haviam sido deixadas para trás, as suas histórias terminavam ali, assim como o frio e o calor, o sonho e o pesadelo, o dia e a noite, o banal e o esplendoroso. Terminava, pois iam em seus barcos feitos de esperança, com a sua vela eriçada e erguida com a boa vontade e ousadia, para além do próprio horizonte encontrar um caminho. O resto do mundo dormia. Mas quando fossem e não mais voltassem, seriam eles os heróis do crepúsculo, para que houvesse um dia, uma nova Alvorada, uma nova Aurora.” Ele se ajoelhou no chão, enquanto o próprio Zenolis se recuava. “Como você pôde? Como?”.
“A resposta? Você não entendeu não é mesmo Zenolis? Sempre houve um fim e eu já havia, fazia muito tecido, o que pode não estar escrito, não significa que tenha um dia sido esquecido, só significa que não houve tempo e mesmo que o tempo, senhor de todos os mortais, faça com que um dia nenhuma dessas histórias termine, eu sei delas o fim. Elas não são incompletas por você, elas são incompletas, pois não houve tempo e elas foram boas enquanto existiram e não choro as lágrimas daquilo que terminou, choro pela alegria que um dia isso me causou. Agora, não mais me atrapalhe, preciso voltar a escrever há uma nova história e essa começa, meu velho nêmeses, começa com ou sem você. Vem?”
A tinta se tornou fresca e o papel voltara a ser novo, para que as palavras fossem frescas e o sonho renovado.

Owen Phillips

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