O salto e o passo
Os vapores da noite subiam em rodopios e redemoinhos da
parte mais funda, para o mais alto até chegar nas narinas. Eram odores pútridos,
de carne, vermes, salpicados por um leve cheiro de fezes e urinas. Esses odores
eram levados pelo vento e mexiam as madeixas de um loiro pálido e encaracolado
do jovem ali, as suas pernas balançavam e ele respirava, enquanto apoiava a sua
mão no parapeito de ferro da ponte. Quando deu aquela tragada do cheiro
nauseabundo olhou em definitivo para aquela lua pálida e distante, cheia e
quase escura.
"Você vai ou não pular?"
A voz veio daquele que estava ao seu lado. Um homem sempre o vinha visitar, naquele mesmo horário e esperava que ele fizesse a decisão e não importa o que acontecesse, ele retornava na noite seguinte, sempre com a mesma pergunta.
"Não sei, devo?"
A voz veio daquele que estava ao seu lado. Um homem sempre o vinha visitar, naquele mesmo horário e esperava que ele fizesse a decisão e não importa o que acontecesse, ele retornava na noite seguinte, sempre com a mesma pergunta.
"Não sei, devo?"
A resposta do garoto veio como uma pergunta, mas era um
pedido de socorro, um socorro que indaga, uma indagação que não pede uma
resposta, apenas apoio.
"Isso é com você, não comigo. Eu nunca digo o que tem
que fazer. Até mesmo o que faço eu simplesmente faço e não questiono".
O garoto olhou para aquele velho, careca, enrugado e quase
se compadecia da vida que aquele velho deveria levar. Conversar com um
moribundo como ele, aquela hora da noite, era a marca registrada de uma vida
miserável. Ele daria aquela chance, mais uma vez ao velho, de dar uma importância
que não se daria a ninguém, apenas para ajudar.
"O que você quer de mim?"
O velho careca abriu um sorriso, ele estava esperando aquilo
havia uma semana e por certo ele teria a resposta agora. Ele devolveu um olhar
certeiro e antes que dissesse alguma coisa o garoto estava de pé, com os braços
abertos, pronto para o salto derradeiro, o último passo, aquele que o
libertaria.
"É isso que você quer velho? Quer que eu pule?"
A resposta veio seca.
"Não, quero saber o que você vai fazer depois"
A resposta veio seca.
"Não, quero saber o que você vai fazer depois"
Ele paralisou e parou com a sua pseudo-pirotecnia de quem
vai saltar e simplesmente disse: "Vou morrer é isso que fazemos, não?"
O velho apenas apontou para o chão, como se fizesse isso
toda a noite e por debaixo da escuridão, por entre as luzes do poste e dos
restos de caixas de papelão havia a carne putrefata de onde saía o cheiro
nauseabundo, de onde pululava moscas varejeiras e ratos, onde um ninho de
baratas fazia de lá seu lar e recinto. O cadáver estava insepulto e aquilo o
fez desequilibrar.
"O que você quer?"
"Quero que você me diga o que fará depois de pular,
voltar aqui para pular de novo? Quantas mortes deve encenar, quantas noites
titubeará diante da decisão que sempre acaba tomando, a de dar um salto. O que
fará quando tiver apenas saltos a realizar?"
O garoto sentou. Olhou para baixo e tentou verter alguma
lágrima, mas ela não saía, tentou fazer algum outro impulso, que não fosse
estar ali sentado, tentou não querer pular, mas parecia a única saída, a de
repetir aquilo até a exaustão. Queria encontrar lógica nisso e não havia.
Quantas vezes fingiu que morreu e em qual delas morreu de verdade? A lembrança
nublava, até o momento que olhou para o lado e não havia mais o velho careca,
apenas algo que se assemelhava a um manto em farrapos e a face por trás do
capuz sumia em uma escuridão cegante.
"O que devo fazer?"
"Dar o próximo passo."
"E como faço?"
"Isso eu não posso te responder, mas te mostrar, é só
me seguir, por isso que estou aqui"
"Eu estou com medo"
"Todos têm medo, mas qual é a sua outra opção?"
"Eu vou ficar bem?"
"Não sei"
O garoto segurou a mão fria que se escondia por debaixo
daquele manto negro e naquela noite, não se ouviu de novo o som surdo do baque
de um corpo caindo no chão, como acontecia há uma semana, a pequena Annie pôde
dormir sem acordar às três da manhã.
Owen Phillips
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