Para as Histórias Sem Término.
Os passos eram ocos na madeira,
que mesmo velha não rangia. Eram passos próximos, devido as suas pernas curtas
e passeava habilmente entre as longas prateleiras, que mais pareciam muralhas
com tijolos que eram livros, por vezes imaginava assim. Mas fazia tudo de forma
tão alegre e tão vivaz que não sentia a hora passar. Ele fazia, porque lhe
fazia muito bem, antes de tudo.
Ele
tinha terminado por hora o seu trabalho. Sabia que muitos daqueles papéis não
seriam nem sequer olhados. Passou a correr pelo grande salão com seus olhos
curiosos e encontrou os olhos do salão, vitrais multicoloridos, irradiado pela
luz de um Sol que nunca se punha, e nunca irá se pôr, iluminava tudo aquilo com
cores douradas. Era o salão o único observador daquela pequena criaturinha, com
cabeça grande e orelhas caídas a frente do rosto, mãos pequenas e pés que eram
ainda menores. Os pergaminhos e afins não deixavam ver que por detrás de tudo
havia olhos grandes e amendoados. Mas ele era ligeiro e antes que alguém
pudesse ver mais dele ele já havia sumido.
Na
sala a frente, após passar o imenso portal de carvalho retorcido, com
centímetros de espessura, chegava a um ambiente menor, mais soturno, onde a
claridade não se espalhava como um véu de noivas, mas se concentrava em pontos
específicos e um desses pontos e, talvez o único, eram as cadeiras e a mesa. Na
mesa, pena e tinteiro, papel e régua, livros abertos e esquemas. Algo ali
estava sendo construído, mas havia sido parado, até que ponto? A criaturinha
jamais saberia, seu papel era entregar a quantidade de papel requisitada e uma
vez feito isso não havia motivo para estar entre aqueles dois poderosos e
imensos senhores. O quanto antes esquentou seus pés no chão e só o barulho da
portinhola na porta foi escutado.
No fim, só havia dois homens,
sempre um de frente para o outro. Em um canto da mesa, normalmente voltado para
aquele que recebia, estava um homem alvo, de pele esticada e ressequida, assim
como cabelos e mechas oleosas que caiam, por hora, na frente do próprio rosto.
Cabelos brancos, mas só ele sabia que era de prata. Naquela parca luz o amarelo
ressaltava dos seus olhos largos e grandes. Seu sorriso sonso e mortal
continuava mesmo quando a sua aparência era séria. Do outro lado, havia um
homem, de óculos, cavanhaque, rosto fino, nariz também fino. Cabelo bem cortado
e negro, ainda que seus pelos da face fossem quase puxados para o ruivo.
Haveria ele pintado esses pelos? De qualquer forma, na mesa descansava pena e
tinta, mão e punho, livro e papel e o homem de cabelo prata ainda olhava de
forma desafiadora para o de cavanhaque.
“Então é assim? Não vai
terminar de novo? Você não se cansa de tentar, para o fim ser apenas isso?”. O
sorriso na sua cara, após dizer isso era de uma alegria infindável. A sua
vitória já acontecera, não havia mais motivo algum para estar ali, a não ser
festejar a vitória, pôr os louros no topo de sua cabeça de longas madeixas e
desprezar o derrotado. Ele, naquela noite, era a própria vitória encarnada.
“Sim, sem dúvida é assim que
deve terminar, não é do jeito que eu desejava, mas foi assim que terminou”. A
sua tristeza era visível. Foi com dificuldades e em câmera lenta que ele foi
fechando o livro, as lágrimas chutavam com força a borda dos seus olhos,
enquanto as primeiras gotas turvavam a sua visão, mas aquilo seria mais do que
ele poderia entregar, especialmente na frente do seu inimigo clássico. Não
deveria e não o fez. Engoliu a seco, com a sua força característica, e se pôs
de pé com o livro em mãos. Olhava para a vasta prateleira e se perguntava onde
deveria guardar, quando a próxima estocada veio em palavras afiadas e
mortíferas.
“Isso, guarde ali, do lado
daquele outro fracasso literário seu, onde também não pôde, ou não quis
terminar. Ou, melhor, poderia guardar naquele canto, pequeno, que o conto era
do que mesmo? Ahh sim, daquela menininha e das suas cartas. Deixe-me vê se me
recordo, outro inacabado seu, correto? Isso não deveria ser uma prateleira, mas
um açougue, com tantas histórias picotadas e interrompidas.” Aquilo era a
glória, mais um passo e ele, mais uma vez, teria o controle. Ele estava lá
quando ele se perdia, sussurrava quando tudo o mais brilhava, mas naquele momento?
Naquele momento era o auge, os seus cabelos moviam-se com o parco vento que
corria com a porta entre aberta, dando a impressão de serem serpentes bailando
na altura dos seus ombros, silvando o veneno que caia em doses mortais a cada
palavra, a cada letra.
O homem de pelos marrons no
queixo, continuou a olhar para ele. Um misto de ternura, dor e pena, uma
simples calmaria enchia seu coração. Aquilo não era o melhor em nada, aquele
homem era a própria representação da morte e da fraqueza que há na morte. Seus
traços representavam isso cada vez que ele aparecia. Não poderia sentir pena,
pois pena era reservado para coisas que existiam e ele sabia, fora daquela
realidade, eles se dissolveriam no vácuo existencial. Por fim, encontrou um
espaço largo, onde um longo volume sobre uma Epopéia fazia seu local de
descanso. Tirou a poeira da roupa e continuou em pé olhando para aquela cena
patética que havia a sua frente.
“Bem, isso, volte, sente de
novo e vamos, nós dois, construir essa história. Mas lembre-se, sou eu que dito
o fim, sempre. Se por acaso, mais uma vez resistir, se por algum acaso
novamente vir a se perder, eu estarei na esquina esperando o seu grito de
desespero e tomo as rédeas nessa história. E não, não haverá final algum feliz.
Aqui não temos finais felizes, estamos certos?”
Owen, o homem de cavanhaque,
negou com a cabeça pendendo-a para baixo. “Não, não mesmo Zenolis, não é assim
que começa e nem será assim que termina uma história. Agradeço toda a sua ajuda
e, até mesmo, ao atrapalho que você criou. Mas sejamos sinceros, isso que você
entende como vitória, é apenas a derrota de todos nós. Aquilo que você vê como
um avanço para você e quer entender como um retrocesso, para mim, é apenas um
fim, por vezes necessário. Tempo em demasia deixei o livro aberto. Tempo em
demasia, esperei. Não foi nem você e nem eu, não foi ninguém aqui, ou aí, foi
apenas o tempo. O tempo sim, esse tudo termina e termina quando há necessidade
de terminar e não, não estou triste pelo fim, nem alegre pelo mesmo. O que
estou fazendo, pequeno demônio criado para me acompanhar, é apenas me preparar,
preparar-me sempre para uma nova história.” Ele pegou a pena, uma nova resma de
papel, olhou para a chama, fitando-a positivamente, esperando que viesse a
criatividade com novas palavras e novas histórias.
“Não se iluda, será mais um
fracasso. Aqui como outras vezes, foi um fracasso e essa sala é cheia de coisas
velhas e imundas, serve como um hall de exemplo do seu exímio estado de
fracassado e da sua incompetência. E o que você faz, aí, sentando, é só
preencher esse fracasso ainda mais.” O seu riso era impossível de conter, assim
como as sombras lançadas pela luz da vela abraçavam-no, escurecendo o ambiente,
também a luz decaia cada vez mais.
As palavras a seguir do Owen
veio cheio de lamentação e dor. “Então eles seguiram para a estrela, em busca
do sonho que haviam perdido. Suas lembranças haviam sido deixadas para trás, as
suas histórias terminavam ali, assim como o frio e o calor, o sonho e o
pesadelo, o dia e a noite, o banal e o esplendoroso. Terminava, pois iam em seus
barcos feitos de esperança, com a sua vela eriçada e erguida com a boa vontade
e ousadia, para além do próprio horizonte encontrar um caminho. O resto do
mundo dormia. Mas quando fossem e não mais voltassem, seriam eles os heróis do
crepúsculo, para que houvesse um dia, uma nova Alvorada, uma nova Aurora.” Ele
se ajoelhou no chão, enquanto o próprio Zenolis se recuava. “Como você pôde?
Como?”.
“A resposta? Você não entendeu
não é mesmo Zenolis? Sempre houve um fim e eu já havia, fazia muito tecido, o
que pode não estar escrito, não significa que tenha um dia sido esquecido, só
significa que não houve tempo e mesmo que o tempo, senhor de todos os mortais,
faça com que um dia nenhuma dessas histórias termine, eu sei delas o fim. Elas
não são incompletas por você, elas são incompletas, pois não houve tempo e elas
foram boas enquanto existiram e não choro as lágrimas daquilo que terminou,
choro pela alegria que um dia isso me causou. Agora, não mais me atrapalhe,
preciso voltar a escrever há uma nova história e essa começa, meu velho nêmeses,
começa com ou sem você. Vem?”
A tinta se tornou fresca e o
papel voltara a ser novo, para que as palavras fossem frescas e o sonho
renovado.
Owen Phillips
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