quarta-feira, 4 de março de 2015

O salto e o passo

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Os vapores da noite subiam em rodopios e redemoinhos da parte mais funda, para o mais alto até chegar nas narinas. Eram odores pútridos, de carne, vermes, salpicados por um leve cheiro de fezes e urinas. Esses odores eram levados pelo vento e mexiam as madeixas de um loiro pálido e encaracolado do jovem ali, as suas pernas balançavam e ele respirava, enquanto apoiava a sua mão no parapeito de ferro da ponte. Quando deu aquela tragada do cheiro nauseabundo olhou em definitivo para aquela lua pálida e distante, cheia e quase escura.

"Você vai ou não pular?"

A voz veio daquele que estava ao seu lado. Um homem sempre o vinha visitar, naquele mesmo horário e esperava que ele fizesse a decisão e não importa o que acontecesse, ele retornava na noite seguinte, sempre com a mesma pergunta.

"Não sei, devo?"

A resposta do garoto veio como uma pergunta, mas era um pedido de socorro, um socorro que indaga, uma indagação que não pede uma resposta, apenas apoio.

"Isso é com você, não comigo. Eu nunca digo o que tem que fazer. Até mesmo o que faço eu simplesmente faço e não questiono".

O garoto olhou para aquele velho, careca, enrugado e quase se compadecia da vida que aquele velho deveria levar. Conversar com um moribundo como ele, aquela hora da noite, era a marca registrada de uma vida miserável. Ele daria aquela chance, mais uma vez ao velho, de dar uma importância que não se daria a ninguém, apenas para ajudar.

"O que você quer de mim?"

O velho careca abriu um sorriso, ele estava esperando aquilo havia uma semana e por certo ele teria a resposta agora. Ele devolveu um olhar certeiro e antes que dissesse alguma coisa o garoto estava de pé, com os braços abertos, pronto para o salto derradeiro, o último passo, aquele que o libertaria.

"É isso que você quer velho? Quer que eu pule?"

A resposta veio seca.

"Não, quero saber o que você vai fazer depois"

Ele paralisou e parou com a sua pseudo-pirotecnia de quem vai saltar e simplesmente disse: "Vou morrer é isso que fazemos, não?"

O velho apenas apontou para o chão, como se fizesse isso toda a noite e por debaixo da escuridão, por entre as luzes do poste e dos restos de caixas de papelão havia a carne putrefata de onde saía o cheiro nauseabundo, de onde pululava moscas varejeiras e ratos, onde um ninho de baratas fazia de lá seu lar e recinto. O cadáver estava insepulto e aquilo o fez desequilibrar.

"O que você quer?"

"Quero que você me diga o que fará depois de pular, voltar aqui para pular de novo? Quantas mortes deve encenar, quantas noites titubeará diante da decisão que sempre acaba tomando, a de dar um salto. O que fará quando tiver apenas saltos a realizar?"

O garoto sentou. Olhou para baixo e tentou verter alguma lágrima, mas ela não saía, tentou fazer algum outro impulso, que não fosse estar ali sentado, tentou não querer pular, mas parecia a única saída, a de repetir aquilo até a exaustão. Queria encontrar lógica nisso e não havia. Quantas vezes fingiu que morreu e em qual delas morreu de verdade? A lembrança nublava, até o momento que olhou para o lado e não havia mais o velho careca, apenas algo que se assemelhava a um manto em farrapos e a face por trás do capuz sumia em uma escuridão cegante.

"O que devo fazer?"

"Dar o próximo passo."

"E como faço?"

"Isso eu não posso te responder, mas te mostrar, é só me seguir, por isso que estou aqui"

"Eu estou com medo"

"Todos têm medo, mas qual é a sua outra opção?"

"Eu vou ficar bem?"

"Não sei"


O garoto segurou a mão fria que se escondia por debaixo daquele manto negro e naquela noite, não se ouviu de novo o som surdo do baque de um corpo caindo no chão, como acontecia há uma semana, a pequena Annie pôde dormir sem acordar às três da manhã.

Owen Phillips

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